23.12.12

De Villa O'Higgins a Chaltén

Villa O'Higgins é o fim da Carretera Austral. Depois dos 1200km mais lindos que eu poderia imaginar, chegamos a este fim de estrada, que para os automóveis é um beco sem saída. Quem segue para o sul de carro, tem que voltar pelo menos 200km para o norte, atravessar a cordilheira e então seguir pela Argentina. Isso faz com que esses últimos 200km sejam especialmente isolados e dá ao povoado de villa O'Higgins um certo clima de fim do mundo. Rodeado de montanhas e glaciares, parecia até implausível que sairíamos de Villa O'Higgins. O barco que nos levaría sai com pouca frequência e somente se as condições meteorológicas estão boas. Como ali não vimos sol, só ventava, nevava ou chuvia, estávamos incertos de quando o barco saia.

Fomos os últimos a chegar em Villa O'Higgins. Havia dois casais de ciclistas e cinco pessoas a pé, que nos receberam com janta pronta e cerveja no dia em que chegamos. Ótima recepção pois estávamos com muita fome e cansados. Como eles estavam esperando o barco há mais dias, estavam mais impacientes que nós quanto a saída do barco. Ao final, o barco atrasou somente um dia, que nos serviu para um bom descanso.
O itinerário era o seguinte: alguns km em bicicleta até o porto, 3 horas de barco de Villa O'Higgins até Candelário Mancilla, onde está a aduana chilena. Até a aduana Argentina, 22 km de trilha, dos quais a metade se pode pedalar. Armar acampamento na aduana Argentina e mais 15km de trilha bordeando um outro lago. Finalmente mais 40km de bicicleta até Chaltén.
Começamos mal. 7 horas da manhã, chuva e frio, como de costume nestes dias, logo nos primeiros minutos de pedalada, o primeiro ciclista, o que ia mais na frente, cai em um buraco que estava escondido pela água barrenta. Um alforge quebrado, passaportes molhados e um ciclista ensopado. Até aí, tudo bem.
 Neste trecho, eu já estava desconfiado da minha correia. Ela havia quebrado nos últimos dias, logo quando estava nevando em um desfiladeiro estreito, obviamente sem acostamento nem guard-rail. Nesta ocasião, reparei, mas segui com a mesma correia. A experiência me diz que a correia sempre quebra nas ocasiões mais impróprias. Dito e feito, logo antes de chegar no porto, escutei um "tac" a mais, um barulhino extra que minha bicicleta não faz de costume. Segui pedalando de leve. No barco pude confirmar o meu receio: um elo estava meio rompido. O fato é que a correia já estava para lá de gasta, com vários remendos e eu não tinha outra. Resumindo, reparei e ela arrebentou mais uma vez entre as aduanas. Então reparei de novo e ela durou mais uns 800 km, quando eu pude finalmente comprar outra.
O trecho entre as duas aduanas foi dos mais cansativos da viagem. Tivemos que empurrar as bicicletas carregadas por uma trilha bem difícil, construindo algumas pontes para atravessar rios e levantando a bicicleta com frequencia.
Na aduana argentina, armamos acampamento, os onze. Aí, o problema era que o barco que deve fazer esses 15km não estava operando ainda. Se supõe que deveríamos costear o lago, chamado laguna del desierto. pela trilha, empurrando as bicicletas outra vez, durante esses 15km. Antes de chegar no local, eu não estava perocupado, mas chegando na aduana argentina, me dei conta que o relevo na costa do lago era terrivelmente íngrime e a trilha deveria ser tão difícil como a trilha que acabávamos de fazer. Havia uma outra opção. No meio do lago, havia um hotel que tinha um barco para os seus clientes chegarem ali. O policial aduaneiro nos disse que talvez o dono do hotel poderia passar aqui e nos quebrar esse galho. Mas o policial não foi nada preciso no que disse. No dia seguinte, tínhamos que decidir se começar a caminhar cedo, ou esperar o barco que talvez nos ajudasse. O policial tampouco nos falou de preço ou horário. Acostumados com os serviços oferecidos na Europa, alguns do grupo se irritavam bastante com a situação. Para mim, parecia uma situação bastante cômica em realidade. A certo ponto, meio que me ofereci, meio que me pediram para falar com o policial. Assim, eu brasileiro, ele argentino, entre hermanos no entenderíamos. Bueno, fui conversar com ele, tomamos uns mates, falamos de futebol, de como era a vida ali, etc.Voltei ao acampamento, onde todos esperavam ansiosos pelo o que eu tinha a dizer. Foi de verdade cômico, me senti até constrangido por toda a atenção que davam a mim, ao passo que eu não havia obtido nenhuma informação nova. O que lhes disse a mais foi o seguinte: no meu feeling, o "talvez" dele é mais para sim do que para não. Ainda assim, é um talvez. Os mais ansiosos se puseram a preparar-se para a caminhada enquanto a nossa barraca ainda era a única montada. Em seguida, chegou o policial anunciando a boa nova. O barco chegava em 30 minutos, levaria as bicicletas, duas mochilas e uma mulher. Isso sim era cômico. Era um policial militar das antigas e repassava as mensagens em um tom de guerra como se aquilo ali fosse um resgate, hueheu.
O barco veio com o dono do hotel. Neste momento, aqueles que estavam mais ansiosos ficaram de boca aberta. Ao dono do hotel, como eu já desconfiava, não lhe interessava o dinheiro. Veio até essa ponta do lago na boa vontade. Carregou as bicicletas e mochilas, levou tudo até o outro lado na boa vontade e não pediu nem aceitou um tostão. Levou um aperto de mão e muitos sorrisos em troca. Ele bem conhecia a trilha e sabia o sofrimento que era fazer aquilo com as bicicletas.
Em seguida, partimos contentes e leves a caminhar pelos 15 km. Os europeus ficaram impressionados com a minha arte de negociação. Eles deram por certo que foi graças a mim que o barco veio. Bem, até hoje não sei o que aconteceu... Durante a caminhada vimos que levaríamos mais de um dia se estivéssemos com as bicicletas. Isso, sem lugar para acampar. Nos livramos dessa "gauchada", como disse o senhor do hotel. Chegamos do outro lado da laguna del desierto em umas cinco horas. Em seguida, pedalamos mais uns 40 kms até chaltén. Aqueles que estavam a pé, pegaram uma espécie de taxi. Em chaltén ficamos todos no mesmo albergue e comemos uma parrillada para festejar e repor as energias.

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